ANELISE
FREITAS: POETA
Ainda
sinto o impacto causado na primeira vez que ouvi os poemas de Anelise Freitas,
em 2008 (ou 2009), no palco do Eco
performances poéticas. Seus versos iluminavam uma área sombria: o prazer
feminino.
Depois
da estreia, Anelise foi celebrada como a nossa Ana Cristina César ou nossa
Hilda Hilst, devido ao despudor de sua linguagem. Mas não foi o seu erotismo
que me deixou no chão, e sim como seus versos avançavam fundo – às vezes,
despretensiosamente – na tensão dos relacionamentos matrimoniais, sob o ponto
de vista do desejo selvagem e da solidão sexual da mulher/mãe. Essa poética ia
além das comparações. E, para minha surpresa final, aqueles versos, com o
“timbre da verdade”, tinham sido escritos por uma garota de 24 anos. Por isso,
quando publicou seu primeiro livro – vaca
contemplativa em terreno baldio (2011) – fui o primeiro na fila de
autógrafos.
Nada
mais perigoso do que uma estreia consagradora. Pergunte ao Tommy, ao Joey, ao
Dee Dee ou ao Johnny. Trata-se do mito do “segundo disco” transportado para o
reino da crítica literária. O tal
setembro é o segundo livro de Anelise Freitas, publicado artesanalmente em
outubro de 2013. Dizem que a segunda é a mais trabalhosa.
Em
vaca contemplativa, além do frescor
de sua língua despudorada, prevalecia um senso de composição natural e exato,
por exemplo, “primícias” e seu final desconcertante:
o homem no grito,
a beira do gozo,
trata a mulher como um
produto, mas o gozo
esplêndido e derradeiro
não está no membro
masculino, mas sim no
caldo cristalino que o
homem jamais saberá
se foi verdadeiro.
Em O tal setembro vigora forte o mesmo
senso de composição - a pontuação fora da norma, como no primeiro deste poema:
: o vulto da menina
estraçalhada na rua
... (“tarde de domingo/02
set).
- também continua com o uso
exclusivo de minúsculas, que foi revolucionário com e.e.cummings na década de
1920 (ao abolir o uso de maiúsculas, cummings puxava o Sublime do seu lugar
maiúsculo para o chão comum de todos os substantivos), depois se tornou uma
fórmula da poesia beat from states e da poesia marginal made in brazil.
A
feitura da obra fora do molde livro, embalada em papel pardo de
correspondência, com as folhas soltas para que o leitor escolha o poema de
leitura sem a ordem hierárquica do sumário, enfim, esse modo de publicar atualiza
ou ritualiza uma práxis de produção poética. Porém, se o rio é o sempre o
mesmo, quem o atravessa nunca é. Embora formalmente O tal setembro me soe o Leave
home de Anelise Freitas, encontro em suas páginas soltas a mulher que
aceita a poesia como um modo de existência e quer nos levar mais longe com suas
palavras:
amanheci, e isso
Basta
Não passearemos pela vida
Hoje. Setembro é um mês
Solitário e caloroso.
Setembro,
as coisas nascem. (“Outro
dia/12 set”.)
Seria
perfeito para minha perspicácia se o uso das maiúsculas tivesse sido um
descuído, um desleixo experimental, e não algo elaborado pela poeta para estar
exatamente ali. Enfim, por aí reconhecemos uma vontade de burlar suas próprias
regras.
É preciso
estar casado para saber o que é solidão, era o que vaca contemplativa me dizia. O
tal setembro não se deixa levar pela melancolia como solução, embora o
sentimento de “solidão” predomine nos primeiros dias:
às escadas da velha casa
pouco a pouco plantamos
o que não colhemos
... (“de volta/08set”) .
Ao avançar dos dias (poemas), essa atitude
desolada, que não acho metafísica e nem abandono, é invadida pela figuração erótica:
me dá na cara, bate
com a alma depois
me beija entre lábios
... (“paralelas/09set”)
Até
passar pelo bateau ivre sem sabê-lo,
a vida boêmia como alternativa (“náufragos do bar/10set”) sem fim:
ainda há um resto de noite
pronta para acabar.
(“fila/20set”)
Pela
forma prosaica de seus poemas, Anelise Freitas está em sitonia com a produção
poética de agora; e no campo específico das jovens poetas mulheres, está pau a
pau com algumas mais divulgadas, como Alice Sant’Anna ou Ana Martins Marques.
Porém, há uma intensidade na escrita de Anelise que vai além do melancolismo da
concorrência, se não vejamos:
(no bar
após gozar
da cara
na cara
na cama
no chão)
uma rua que se bifurcar
abre novos caminhos
(eu vou). (“sem tempo/22set”)
Parece
que enquanto algumas mulheres levam a vida na ponta de uma colher, Anelise vive
a vida na ponta de uma faca.
Anderson Pires é cofundador e organizador do Eco - Performances Poéticas. Professor adjunto de Literatura Brasileira da UFJF e poeta, tendo publicado em 2012 o livro Trovadores Elétricos (Aquela Editora e Funalfa).
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