domingo, 23 de março de 2014

O tal setembro por Anderson Pires

ANELISE FREITAS: POETA

            Ainda sinto o impacto causado na primeira vez que ouvi os poemas de Anelise Freitas, em 2008 (ou 2009), no palco do Eco performances poéticas. Seus versos iluminavam uma área sombria: o prazer feminino.

            Depois da estreia, Anelise foi celebrada como a nossa Ana Cristina César ou nossa Hilda Hilst, devido ao despudor de sua linguagem. Mas não foi o seu erotismo que me deixou no chão, e sim como seus versos avançavam fundo – às vezes, despretensiosamente – na tensão dos relacionamentos matrimoniais, sob o ponto de vista do desejo selvagem e da solidão sexual da mulher/mãe. Essa poética ia além das comparações. E, para minha surpresa final, aqueles versos, com o “timbre da verdade”, tinham sido escritos por uma garota de 24 anos. Por isso, quando publicou seu primeiro livro – vaca contemplativa em terreno baldio (2011) – fui o primeiro na fila de autógrafos.

            Nada mais perigoso do que uma estreia consagradora. Pergunte ao Tommy, ao Joey, ao Dee Dee ou ao Johnny. Trata-se do mito do “segundo disco” transportado para o reino da crítica literária. O tal setembro é o segundo livro de Anelise Freitas, publicado artesanalmente em outubro de 2013. Dizem que a segunda é a mais trabalhosa.

            Em vaca contemplativa, além do frescor de sua língua despudorada, prevalecia um senso de composição natural e exato, por exemplo, “primícias” e seu final desconcertante:

o homem no grito,
a beira do gozo,
trata a mulher como um
produto, mas o gozo
esplêndido e derradeiro
não está no membro
masculino, mas sim no
caldo cristalino que o
homem jamais saberá
se foi verdadeiro.

                Em O tal setembro vigora forte o mesmo senso de composição - a pontuação fora da norma, como no primeiro deste poema:

: o vulto da menina
estraçalhada na rua
... (“tarde de domingo/02 set).
  
- também continua com o uso exclusivo de minúsculas, que foi revolucionário com e.e.cummings na década de 1920 (ao abolir o uso de maiúsculas, cummings puxava o Sublime do seu lugar maiúsculo para o chão comum de todos os substantivos), depois se tornou uma fórmula da poesia beat from states e da poesia marginal made in brazil.

            A feitura da obra fora do molde livro, embalada em papel pardo de correspondência, com as folhas soltas para que o leitor escolha o poema de leitura sem a ordem hierárquica do sumário, enfim, esse modo de publicar atualiza ou ritualiza uma práxis de produção poética. Porém, se o rio é o sempre o mesmo, quem o atravessa nunca é. Embora formalmente O tal setembro me soe o Leave home de Anelise Freitas, encontro em suas páginas soltas a mulher que aceita a poesia como um modo de existência e quer nos levar mais longe com suas palavras:
amanheci, e isso
Basta
Não passearemos pela vida
Hoje. Setembro é um mês
Solitário e caloroso.
Setembro,
as coisas nascem. (“Outro dia/12 set”.)

            Seria perfeito para minha perspicácia se o uso das maiúsculas tivesse sido um descuído, um desleixo experimental, e não algo elaborado pela poeta para estar exatamente ali. Enfim, por aí reconhecemos uma vontade de burlar suas próprias regras.

É preciso estar casado para saber o que é solidão, era o que vaca contemplativa me dizia. O tal setembro não se deixa levar pela melancolia como solução, embora o sentimento de “solidão” predomine nos primeiros dias:

às escadas da velha casa
pouco a pouco plantamos
o que não colhemos
... (“de volta/08set”) .

                 Ao avançar dos dias (poemas), essa atitude desolada, que não acho metafísica e nem abandono, é invadida pela figuração erótica:

me dá na cara, bate
com a alma depois
me beija entre lábios
... (“paralelas/09set”)

            Até passar pelo bateau ivre sem sabê-lo, a vida boêmia como alternativa (“náufragos do bar/10set”) sem fim:

ainda há um resto de noite
pronta para acabar. (“fila/20set”)

            Pela forma prosaica de seus poemas, Anelise Freitas está em sitonia com a produção poética de agora; e no campo específico das jovens poetas mulheres, está pau a pau com algumas mais divulgadas, como Alice Sant’Anna ou Ana Martins Marques. Porém, há uma intensidade na escrita de Anelise que vai além do melancolismo da concorrência, se não vejamos:

(no bar
após gozar
da cara
na cara
na cama
no chão)
uma rua que se bifurcar
abre novos caminhos
(eu vou). (“sem tempo/22set”)


            Parece que enquanto algumas mulheres levam a vida na ponta de uma colher, Anelise vive a vida na ponta de uma faca.   









Anderson Pires é cofundador e organizador do Eco - Performances Poéticas. Professor adjunto de Literatura Brasileira da UFJF e poeta, tendo publicado em 2012 o livro Trovadores Elétricos (Aquela Editora e Funalfa). 

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